Às vezes uma fotografia esmaecida tem o condão proustiano de trazer dias submersos à tona.
Percorrendo a exposição retrospectiva da Semana de Arte Moderna supervisionada pelo Conselho Estadual de Cultura que então presidia, detive-me surpreso ante a mostra de Mário de Andrade organizada pela USP.
Aquela vitrina de fotografias que acompanharam o autor de Macunaíma durante toda uma existência, causou impacto que jamais esquecerei. Ali estava minha família, toda ela transportada para a dimensão da meninice! Mário guardava com carinho o retrato de seus companheiros de infância. Meus tios, minha mãe, meus primos, todos reunidos entre as lembranças do poeta; lado a lado com sua gente, tia Nhanhá, tia Mariquinhas, como carinhosamente as chamávamos, Lourdes e Carlinhos, o bravo Carlos Morais de Andrade de 32.
A Revolução Constitucionalista é uma das recordações mais antigas que possuo de Mário de Andrade.
O menino escoteiro, de seis anos de idade, seguia fardadinho pelo Viaduto do Chá ao lado de sua mãe. Subitamente, um homenzarrão moreno abre os braços e diz: - “Lourdes, preciso do Paulinho para ir de bicicleta levar correspondência para as trincheiras”. Fiquei preocupadíssimo. Dias a fio ensaiei com minha bicicleta a jornada que Mário brincando, me propusera. Cada vez que o via na rua, meu coração batia mais forte à espera da convocação.
Organizei um batalhão de meninos da Rua Rego Freitas. Arranjávamos metal para fazer munição. O lema de cada grupo de crianças de todos os bairros era o mesmo. “Se for preciso nós partiremos também!”.
São Paulo era um corpo só, governado por um único espírito. Nunca mais voltei a ter aquela sensação de unidade e de fé. A cidade vibrava com os discursos de Ibrahim Nobre e a poesia de Guilherme de Almeida. A voz de César Ladeira era convocação permanente para a luta.
A flor da juventude partia para as linhas de frente. Mães, irmãs e noivas caminhavam abraçadas com seus voluntários até o ponto de embarque.
São Paulo foi um lenço de adeus e uma bandeira de esperança. Todos participavam, todos comungavam do mesmo sonho. De vez em quando o céu azul de julho era manchado pela gota de sangue dos aviões da ditadura.
Velhos e moços, pais e filhos partiam no mesmo batalhão. A mulher paulista era a grande inspiradora dessa epopéia.
A trincheira irmanava. Dela saíam unidos o filho de emigrantes e o paulista da velha cepa, o estudante universitário e o húngaro que mal falava o português, o fazendeiro e seu colono, o industrial e o operário, o civil e o militar, o preto e o branco. Trinta e dois não foi uma Revolução, foi uma Paixão! Vida, Paixão e Glória de São Paulo!
Por isso escapa a todo o tipo de interpretações, às análises frias dos computadores da sociologia e da economia, ao bisturi dos homens que em seus gabinetes pretendem colocar dentro de leis da História a sacralidade da terra e a dignidade de um povo.
Penso em tudo o que passou e nas coisas que não passam nunca. Nos retratos esmaecidos que falam mais do que muita gente que não se retrata.
Às vezes...