A Vila Buarque, tão ligada à história dos Lebeis, surgiu na última década do século XIX da antiga Chácara do General Arouche, quando seus descendentes juntamente com o Senador Rodolpho Miranda e o engenheiro Manoel Buarque de Macedo resolveram loteá-la com planejamento do escritório Martim Burchard. Foi dos primeiros bairros a possuir luz elétrica e água encanada em suas casas. As ruas, no entanto, continuavam iluminadas pela luz mortiça dos lampiões a gás.

O clã do General Arouche ficaria perpetuado no nome das vias que iam surgindo: Rego Freitas, Bento Freitas, Maria Teresa e o grande amigo da família, o Padre Amaral Gurgel, lente da Academia de Direito.

Em torno da Vila Buarque, as chácaras do Barão de Itapetininga, de Dona Angelica, de Dona Maria Antonia, de Dona Veridiana, do Barão de Ramalho, e do Barão de Souza Queiroz, também se transformavam em ruas e avenidas.

Quando nossa família sofreu o primeiro revés econômico, saiu da rua Direita e passou a morar provisoriamente na Rua General Jardim ao lado das residências de Numa de Oliveira, Horácio Sabino e Luis Antonio Pereira da Fonseca.

Numa, Horácio e ele ficaram conhecidos como “Os três taquígrafos” que implantaram a taquigrafia na Câmara dos Deputados.

Próximos dali viviam também os Costa Carvalho, o Senador Rodolfo Miranda e os Martins, cujo filho passaria a fazer parte da sigla heróica do MMDC.

Tempos depois, os Lebeis estariam mudando para a morada que meu avô Sebastião mandara erguer na esquina da Rego Freitas com Epitácio Pessoa.

Seus cunhados Nhonhô Magalhães e Waldomiro Pinto Alves iriam viver na Avenida Higienópolis e nos Campos Eliseos, em mansões tão bem retratadas pela historiadora Maria Cecilia Naclério Homem nos livros “Higienópolis: grandeza e decadência de um bairro paulistano” e “O Palacete Paulistano e Outras Formas de Morar da Elite Paulistana”.

Nessa época veio parar em nossa família, um sobrado da Rua Brigadeiro Tobias que pertencera à Marquesa de Santos e que alugamos ao Instituto Ciências e Letras do Professor Alfredo Pucca.

Voltando aos vizinhos da rua General Jardim, Numa de Oliveira se mudaria para um palacete neocolonial, na Avenida Paulista, projetado pelo arquiteto português Ricardo Severo, cunhado de Santos Dumont, e pai de Bela que se casaria com meu tio Armando. Numa, fundador do Banco do Comércio e Indústria, do Automovel Club e, juntamente com Antonio Prado Junior, do Club Athletico Paulistano. Sua esposa D. Amelia, era pintora e escultora. Ofereceu à minha avó Zilota relógio de parede que se encontra em meu apartamento.

Marieta, filha de D. Amelia, foi das maiores amigas de nossa gente. Esposa do psiquiatra Enjorras Vamprê, irmão do professor Spencer Vamprê, iluminava com a inteligência e com a voz os saraus que passariam a ocorrer no solar da Rego Freitas.

Horácio Sabino sairia da Rua General Jardim para a Avenida Paulista ocupando vivenda estilo Art-Noveau projetado por Victor Dubugras. A nora do arquiteto, Elsie Dubugras, quase centenária, é a figura fascinante que dirige a Revista Planeta onde, diariamente, comparece.

No local em que morou Horácio Sabino, ergue-se hoje o Conjunto Nacional. Em homenagem à esposa, abriu em seus terrenos a Vila America, da qual surgiria o Jardim America.

A amizade nascida na Rua General Jardim continuaria pela vida afora. Cesário Coimbra, genro de Horácio Sabino, prócer político, era neto da Baronesa de Arary, madrinha de batismo de meu avô Sebastião.

Quando tia Magdalena, na década de 40, principiou a cantar na Radio Gazeta, as netas da Baronesa indagaram da avó o motivo pelo qual jamais ouvira as apresentações da filha de seu afilhado, e ela respondeu com candura centenária:

- Não ouço Magdalena porque não sou assinante da Radio Gazeta!

A casa dos avós maternos, na Rego Freitas 59, falava através do telefone 48901. Setenta anos depois, esse número não me sai da cabeça, juntamente com a voz de minha avó Zilota pedindo ao Emporio Consolação, produtos “Philippe Canot” e frisando:

“- Não quero nada da “Leal Santos” que é gaúcha, nada de queijo de Minas e de produtos que lembrem o nordeste”. Estávamos em 1933, e vivíamos sob a impressão dolorosa produzida pelas tropas que invadiram São Paulo em 30 e nos combateram em 1932.

O porão da casa era alto, bem arejado e confortável.

Nele moraram meus tios Guilherme, Carlos e Armando, quando solteiros, e Raul que permaneceu enquanto a casa existiu. Aí residimos também, meus pais e eu menino, quando mudamos da praça Julio de Mesquita. A doença de meu avô Sebastião exigia a presença do médico.

No porão, terminada a Revolução Constitucionalista, as Lebeis trabalhavam clandestinamente, produzindo objetos artesanais pintados com a bandeira paulista que eram vendidos às ocultas, em benefício das famílias dos combatentes e dos exilados políticos de 32 que tinham em minha tia Nicota Pinto Alves, a grande protetora.

Lembro dos móveis com gavetas secretas onde esconderíamos aqueles inocentes produtos de um sonho, se os homens da ditadura invadissem o refúgio.

Ah! a generosidade das casas de outrora, onde as pessoas nasciam, cresciam, amavam, envelheciam e morriam, na paz do Senhor!

Casarões onde sempre havia lugar para os avós, as tias encanecidas, os primos que vinham do Interior estudar na Capital, as crianças e os vencidos pelo temporal da vida!

Habitações que tinham continuidade nos túmulos de família onde todos prosseguiam convivendo em viagens rumo à eternidade!

A entrada da residência era pela Rua Rego Freitas. Subia-se a escadaria de mármore, abria-se a porta e entrava-se no hall que dava à direita, para o escritório de meu avô. Mais adiante a “sala azul” com o piano meia cauda e a parede forrada de retratos com dedicatórias de Bilac, Alberto de Oliveira, Coelho Neto, Martins Fontes, Vicente de Carvalho, Olegario Mariano, Guilherme de Almeida. Na outra sala, “a amarela”, entre dois espelhos imensos, a mobília escura do império, marchetada de madrepérola. Duas dessas cadeiras ainda estão comigo. Num canto um piano de cauda coberto com xale espanhol guardava o toque das mãos de Guiomar Novaes, Antonieta Rudge, Madalena Tagliaferro, Souza Lima e de tia Yacyra. Sobre o pequeno armário com tampo de mármore, os dois bustos de porcelana de autoria de Paul Dubois que acompanham a família há muitas gerações. Nas fotografias amarelecidas da década de dez, lá estão eles contemplando as travessuras das crianças que davam tanto trabalho a fraulein Nina, a governanta alemã. Na foto de minha mãe em 1925, vestida de noiva, os bustos das marquesinhas, ladeiam seu sorriso. Hoje, dão um toque nostálgico aos quadros modernos da sala de jantar do apartamento, onde meu bisneto Victor Paulo aprende a andar olhando para eles.

Em frente ao escritório do avô, com a escrivaninha onde me escondia e que me acompanha também até hoje, a sala de jantar com seu lustre e cristaleiras, parece reter a alegria das reuniões de família e aquela passagem de ano em que Mário de Andrade resolve puxar cordão em volta da mesa, com meus avós, meus pais, tios e primos e, na rabeira, um menino de seis anos que se agarrava ao paletó de um tio, para não sair do ritmo!

Ah! o sabor dos cozidos de outrora, da paçoca de pilão, do biscoito quente e do sorvete que vinha da Confeitaria Elite! Tudo servido pela copeira de vestido preto, avental de renda, luva e tocado branco.

Depois da sala de jantar, o corredor. Do lado direito os quartos de dormir e o de vestir dos avós com ligação para o de tia Magdalena; em frente, os quartos de tia Cecilia, e o de mamãe, quando solteiras, a sala de almoço, o banheiro e a copa.

Na cozinha, o fogão a lenha era alimentado todas as semanas por uma carroça que despejava no quintal toras de madeira.

Outra carroça, também semanalmente vinha recolher a roupa usada.

Fazer e receber visitas fazia parte de um ritual.

“- Hoje é dia de visitar D. Mocinha Macedo Soares, amanhã iremos à casa de Horácio de Mello e de Eponina da Veiga, quarta-feira vovó Zilota vai tomar chá com Isaura Alves Lima, sua amiga de infância.”

“Quinta-feira Marieta Vamprê e D. Amelia Rangel Pestana virão almoçar. Sexta, iremos a um concerto em casa de Marieta Teixeira de Carvalho, na rua Florêncio de Abreu.”

“Sábado vamos ver Silvia e Noé Azevedo. À noite, todos na Estação do Norte para nos despedirmos de Yacyra e Carlos que embarcam para o Rio.”

“Domingo, não podemos perder o sermão que Monsenhor Manfredo Leite vai proferir na Igreja do Carmo. À tarde, temos que esperar na Estação da Luz, Sinhara Moura com suas filhas Cotinha e Luciola, que chegam de Araraquara.

Depois tomaremos lanche com Nenê Capote Valente, D. Zizinha e as meninas Ulhoa Cintra. Mais tarde, Noemia Nascimento Gama e Maria da Glória Capote Valente virão dizer poemas num sarau que contará com a presença de Guiomar Novaes, cuja família mora também na Rua Rego Freitas. Tia Cecília, tia Magdalena e Edith Capote Valente encantarão a reunião com suas belas vozes; Martins Fontes já avisou que virá de Santos e Mario de Andrade trará sua tia para tocar piano, caso queiram dançar. Ah, precisamos saber também se Sinhazinha do Bacharel está melhor e se a prima Sinhá Prado já voltou da Europa!”

No Carnaval, tios e primos se fantasiavam, e o bando de mascarados rumava para os palacetes de Numa de Oliveira, de Horácio Sabino, de Horácio de Mello. Entre risadas e serpentinas, todos procuravam ocultar suas identidades.

A casa respirava, ria e chorava com os moradores. Era um ser vivo e participante que, quando veio abaixo, deixou em todos a sensação de um crime: a ingratidão contra aquelas paredes confidentes que guardavam segredos de uma época.

Meus pais e eu fomos os últimos a partir. Após a morte de meu avô, minha avó e meus tios Raul e Magdalena vieram morar uns tempos na Bela Cintra. Depois alugaram uma propriedade de Marieta Vamprê, na Alameda Campinas, e, posteriormente, compraram o sobrado da Rua General Menna Barreto onde tia Magdalena continuou a dar lições de canto.

Enquanto nós três permanecemos na Rua Rego Freitas, o casarão já vazio, gemia e estalava durante a noite pressentindo o naufrágio que se aproximava.

Somente o pequeno oratório continuou no corredor lembrando a época em que as mulheres da família, em dia de tempestade, ali se reuniam para invocar a proteção de Santa Bárbara. Cheguei a presenciar certa ocasião, minha trisavó Donana, minha bisavó Leoncia, a avó Zilota e mamãe, com as mãos nos ouvidos pedindo à santa que desviasse os raios e abrandasse o ribombar dos trovões. Reminiscências do tempo em que viveram em fazendas sem pára-raios, habitando casas-grandes que navegavam ao sabor das tempestades.

À noite, um menino assustado percorria as dependências vazias de seu reino. No escritório, ouvia ainda o pigarro do avô.

Um piano tocava para os espelhos embaçados no salão onde o papel amarelo se desprendia das paredes. Na sala de jantar, um tilintar de talheres e risadas se aninhavam nas cortinas desbotadas. A porta dos quartos de dormir se abria para a treva que adormecera neles.

Somente o porão ainda vivia, com os três sobreviventes acuados pelas sombras que vinham descendo as escadas.

A última pessoa a sair da casa foi minha mãe que levou consigo a chave da porta da rua. Uma chave que guardou até o fim da vida em sua caixinha de jóias e que, pouco antes de morrer, passou as minhas mãos. Chave que fechou para sempre a porta de uma época que se apagava com o derradeiro lampião a gás da Vila Buarque.