Somente agora paro um pouco para pensar na impetuosidade da torrente que vem me arrastando há oitenta e dois anos. Às vezes, no remanso das praias, deixei o corpo ficar sob o sol das paixões e a lua dos momentos de ternura.
Pouco depois, a água do rio ia me buscar e as braçadas enfeitavam-se de vegetações de deslumbramento.
Sempre senti a vida como fonte de milagres que iam ocorrendo enquanto o nadador enfrentava corredeiras e redemoinhos.
Uma noite, Emy estava deitada e eu, sentado ao pé da cama, falava sobre as confirmações da verdade ocorrida conosco.
Subitamente, um pequeno vaso de cristal, presente de seu pai, principia a correr sobre a mesinha do quarto. Minha mulher se assusta e eu, consigo segurar no ar a peça na hora em que ia caindo sobre o assoalho. Para acalmá-la, digo que o que estava ocorrendo deveria ser conseqüência de breve abalo sísmico.
No dia seguinte, ao acordarmos, o vaso estava no chão estilhaçado.
Outra feita, durante o jantar, falávamos de Sérgio Coelho, o amigo há pouco falecido, quando ouvimos um estalido de comutador, e a luz do corredor se apaga de repente.
Uma tarde, recusando convite de colegas de “A Gazeta” para tomar chope, fui para casa um tanto frustrado.
Há muitos anos, resolvera parar de beber e de fumar, ao mesmo tempo.
Emy, na cozinha, preparava o macarrão que seria servido no jantar. Sobre a geladeira, uma grande caneca de chope fazia parte da ornamentação local.
Olhei para o cristal, enquanto ia pensando na companhia que deixara de usufruir. Foi o tempo suficiente para se ouvir um estouro. A caneca em mil pedaços se espalha pela cozinha, caindo grande parte do vidro sobre o macarrão que teve de ser jogado fora.
Outra noite, em Itanhaém, tenho um pesadelo em que sou arrastado por uma tempestade de gritos até as ruínas existentes junto ao Hotel Balneário onde nos hospedávamos. Acordo assustado e conto o sonho à Emy.
Voltamos para São Paulo. Ao chegarmos à Avenida Ipiranga, a manicura aguardava na porta do apartamento.
Indagamos como havia adivinhado nossa chegada naquele momento. Disse apenas que fora avisada.
Essa manicure de Emy, tirava a sorte muito bem.
Foi retirando o baralho da bolsa e colocando as cartas sobre a mesa.
Olha para mim e diz:
– O senhor levou uma surra de gritos a noite passada!
Emy ficou tão assustada que acabou não fazendo as unhas e despedindo a cartomante.
Foi na porta desse apartamento na Avenida Ipiranga que ouvimos aquelas batidas na madrugada em que Ibrahim Nobre faleceu. Essa mesma porta que encontramos fechada por dentro com o ferrolho quando voltávamos da praia e, que precisou ser arrombada para podermos entrar.
Enquanto escrevi “A Casa”, “Os Números” e o “Poema da Descoberta”, o apartamento foi invadido por barulhos inexplicáveis que cessaram no momento em que coloquei no papel o último verso.
O pintor Wagner, alemão e cidadão do mundo, morava no último andar de um prédio, na Rua Augusta.
Numa visita que fizemos a ele, falamos de André Csatho, recentemente desaparecido; ocultista, e amigo de Hermann Hesse e de Jung, e que fora dos maiores encontros de minha vida. A grande paixão de André eram os gatos com os quais se comunicava e dava ordens, mentalmente. Disse a Emy, que quando falecesse, seria ela quem iria fechar seus olhos, o que veio a acontecer aquela noite fantasmagórica em que chegamos ao necrotério da Beneficência Portuguesa, e encontramos o corpo desse personagem fascinante envolto por um lençol. Estava de olhos abertos que foram fechados por Emy.
Falávamos de André Csatho, quando entra pela janela um gato que desfila por todos nós fitando-nos com olhos que lembravam muito os olhos daquele amigo.
O pintor indaga:
– De onde veio esse gato?
Depois de contemplar a todos ali presentes, o animal salta para o terraço e desaparece.
Digo ao dono da casa, que sempre que se fala em André Csatho, ele se manifesta de algum modo.
No silêncio que desceu sobre a sala, apenas os quadros de Wagner falavam.
Numa Sexta-feira Santa estávamos reunidos na sala de jantar. Quase todos, jovens amigos de Dudu, meu enteado.
A conversa recaiu sobre a figura fascinante de D. Sebastião.
Fábio Porchat foi ficando pálido e antigo, com um olhar que já não era dele. Desceu sobre a sala um cheiro de incenso que somente desapareceu na hora em que Fábio voltou a si.
Um rei místico e sempre esperado, só poderia se manifestar através do incenso e numa Sexta-feira Santa!
Outra feita, o Padre Gregório avisa Emy que algo estava escondido no fundo falso de uma cômoda. Retiramos as gavetas e encontramos dobrada sob elas, uma mortalha que é medida por ele. Tinha exatamente o tamanho de minha mulher.
Certa noite, sonhei que caminhava em rua deserta, abria o portão de determinada residência, seguia pelo corredor e batia numa porta, quando acordei. O que marcou o sonho, aparentemente sem sentido, foi a primavera em flor sobre o portão.
No dia seguinte, na Gazeta, sou procurado por um homem que se apresenta:
– Sou enfermeiro do Hospital das Clínicas e tenho uma paciente em estado grave, vítima de acidente, que foi levada para casa. Ela me disse que sua maior vontade era conhecê-lo.
O senhor concorda em ir comigo até lá? Acredito que sua visita vá fazer muito bem a ela.
– Vamos já – respondo.
Fomos até a garagem, pegamos um jeep e seguimos a orientação do enfermeiro.
Quando chegamos, fui reconhecendo a rua sossegada, e no fim dela, a primavera florindo sobre o portão da casa.
Entramos. O corredor me era familiar. Abrimos a porta. Na cama, uma mulher engessada nos aguardava.
Lembro-me também de certa madrugada em que acordei com uma picada no rosto. Tateei o travesseiro e consegui retirar de dentro dele um longo e estranho alfinete.
Numa véspera de Natal, em Itanhaém, vou até a praia conversar com lembranças. Evoco meus mortos e me concentro naquela chave que minha mãe conseguiu salvar quando o solar de minha infância foi derrubado.
Voltando para casa encontro a família em polvorosa.
O Dudu, armado de um revólver, dirigia-se para a edícula no fundo do quintal dizendo:
– Tem gente lá, deve ser ladrão, o quarto está trancado por dentro.
Depois de algumas tentativas para abrir a porta, resolvemos arrombá-la. O quarto estava vazio.
Na manhã de 30 de setembro de 1996, dia em que completava setenta anos, encontrava-me sentado na sala conversando com Emy, quando uma rolinha entra pela janela e pousa durante alguns instantes em meu joelho.
Minha mulher então me diz:
– Você está recebendo um telegrama de felicitações da própria vida!
Sobre a torrente que vai arrastando fisionomias, circunstâncias e fragmentos de recordações, tateio meu rosto e indago se sou a voz do rio, ou apenas o reflexo de uma nuvem que se desmancha no ar!