Conheci Itanhaém em 1939. Era uma cidadezinha colonial adormecida entre a bênção do convento e o rio desaguando no mar onde Hans Stadens naufragou na alvorada quinhentista.
A primeira vez, hospedei-me com minha mãe no Hotel Polastrini.
Chegamos exatamente no dia em que os irmãos Foz inauguravam sua casa com uma batalha de rojões, buscapés e caramurus.
Maneco Foz, seu pai, foi sócio de meu bisavô Carlos Batista de Magalhães na “Casa Bancária, Lara, Magalhães & Foz”, em Araraquara, e na fundação da Estrada de Ferro Araraquarense.
Lembrava tudo isso ainda há dias, num banho de mar com Célia e Sylvio Foz.
Às nove horas, o gerador que fornecia energia era desligado e a vila adormecia um sono de pirilampos e de serenatas.
Nos poucos bares abertos, lampiões de querosene, balançando ao vento, embalavam a prosa dos retardatários que, às vezes, vinham a ser encontrados adormecidos sobre a areia que cobria o devaneio das vielas.
Conversas de pescaria, de assombração, e o velho Rosendo lembrando como transportara a remo até embarcação parada ao largo, o Paulo Duarte e um filho de Vicente de Carvalho. Terminara a Revolução de 32, e eles pretendiam ir para a Argentina com o fito de prosseguir a luta.
Eu, com meus afoitos doze anos, resolvi mergulhar da ponte da estrada de ferro nas águas escuras do rio. Quando alcancei a margem, o delegado pegou-me pelo braço e foi até o hotel avisar minha mãe sobre o perigo que representava aquele salto sobre pedras e pilares submersos.
Muitos anos mais tarde, já bem idosa, Nely Polastrini, proprietária do hotel, ao me ver passar chama-me e diz que desejaria me apresentar a seus hóspedes. Ela era concunhada de Annita Malfatti e fora professora no Mackenzie; pessoa encantadora que sempre me cumprimentava com alegria:
− Nelly, mas para que me apresentar a seus hóspedes?
− Porque você é uma glória nacional, Paulo!
Timidamente chego ao terraço do hotel acompanhado de minha anfitriã que vai dizendo aos veranistas reclinados em cadeiras de lona:
− Olhem quem eu trouxe para apresentar a vocês, o grande Paulo Setúbal!
Fui muito cumprimentado e sai pela manhã de sol com a “Alma Cabocla” feliz.
Em 1950, volto a Itanhaém com Emy, hospedando-me dessa vez no Hotel Balneário, onde hoje é uma colônia de férias.
João Farah, seu proprietário foi das figuras encantadoras que conheci. Seu coração era uma espécie de hospedaria de boêmios, ponto de encontro de confidências e de pinduras.
No balcão de seu hotel se reuniam sempre, Edson Batista de Andrade, que estava fundando o “Cibratel”, Carlito Queirós Telles, o “Guaraná”, o Juca, Pinto Júnior, o Mário “Careca”, o Striga, o Juju que costumava atravessar o rio a nado empunhando o violão, e tantos outros.
De vez em quando apareciam por lá também, os Foz, os Mestre, Elipídio Reale com os filhos pequenos, João Leite Sobrinho, Valdo Guilherme e Flávio Torres.
João Farah é evocado por Miguel Reale em suas “Memórias”.
Dessa época ficou também a amizade que me une a Ernesto Zwarg, jornalista e pioneiro da ecologia, e a José Rosendo, memorialista e seresteiro. Ernesto, filho da poetisa “Pedrinha”, é irmão e parceiro de Antônio Bruno em músicas sobre Itanhaém.
Em 1950, quando conheci esses dois amigos, por brincadeira, pedi a Ernesto que me ensinasse a nadar, que era a única coisa que eu fazia bem nesse tempo.
Chegamos na beira do rio e Ernesto pacientemente ministrou sua primeira e única aula. Segurando-me pela barriga, manda-me bater os braços e as pernas. Numa hora em que o professor se distraiu, o aluno mergulhou e desapareceu nas águas turvas que rolavam para o mar. Ernesto entrou em pânico. Corria de uma lado para o outro, mergulhava e pedia a todos que ajudassem a recuperar o náufrago que sumira. Quando surgi mais adiante, nadando em direção da outra margem, a prainha era de aplausos para o aluno e uma suave vaia para o improvisado professor de natação.
Ah, esse rio que ainda hoje atravessa meu sono!
Todas as manhãs as canoas a remo do Sertório, do “Pernambuco”, do “Bigode”, atravessando os banhistas de uma margem para a outra. O banho de mar era tomado na “prainha dos pescadores”, e nós com a energia da juventude, indo e vindo a nado.
Numa dessas travessias salvei a vida de Antônio Carlos de Abreu Sodré que teve cãibra no meio do rio. Alicinha Arrobas Martins, sua prima, sempre recorda o episódio.
Nesse local, morreria alguns anos mais tarde, Clóvis Bueno de Azevedo, uma das grandes esperanças de sua geração.
O pescador rosendo foi o primeiro promotor de turismo local. Acompanhando aquele simpático caiçara ficamos conhecendo os costões, os caminhos da mata, e a delícia das ostras tiradas junto ao “Poço de Anchieta”.
Há meio século sou visitado pela “Folia de Reis”. Ao longe violões vem acompanhando o canto onde reconheço sempre as vozes de Ernesto Zwarg, José Rosendo e Ernesto Bechelle. A madrugada desperta ao ritmo de “Acordai se estais dormindo, nesse sono tão profundo”.
Correspondendo ao amor que sinto pela cidade, sua Biblioteca Municipal tem meu nome.
Itanhaém de Benedito Calixto, de Emídio de Sousa, de Bernardino Pereira, está também refletida na pintura de Pancetti, Volpe, Quirino da Silva e na música de Totó Mendes e Antônio Bruno, e na poesia de Nilo Soares Ferreira, “Pedrinha” e Colombina.
Itanhaém onde encontros memoráveis ocorriam com Heraldo Barbuy, Vicente Ferreira da Silva, Paulo Emílio Salles Gomes, Alceu Maynard de Araújo e Milton Vargas, que prosseguem em casa de Miguel Reale e nas caminhadas com Nelson Pinheiro Franco. Se fosse possível voltar no tempo, convidava os turistas barulhentos de hoje, para caçar “pio pardo”.
Até a década de 50, essa caçada impossível era o trote que saudava os arigós que chegavam com sua brancura e bisonhice em matéria praiana. O calouro era convidado para a caçada numa praia deserta, e enquanto piava para atrair o “pio pardo”, todos se retiravam abafando as risadas. Quando a noite chegava, apenas o barulho do mar e o piar do visitante a chamar o pássaro.
Será que não estamos hoje todos transformados em caçadores de “pio pardo” à espera de um momento lírico que não volta mais?
Itanhaém de minha mocidade; nenhum assalto, nada de droga. A única violência era o mar batendo no costão.
Só se chegava de jardineira que circulava pela praia atolando sempre em Mongaguá; ou no trem onde vínhamos no carro-restaurante bebendo cerveja e comendo sanduíches de filé. O apito anunciando a chegada era o grande acontecimento. Todos na estação à espera de Godot”
O único cinema era o são Paulo, no local do antigo Gabinete de Leitura, onde ficaram acantonados os soldados constitucionalistas que vieram defender a cidade de um possível ataque das forças da ditadura.
No mesmo local ocorriam os bailes carnavalescos sobre tamancos.
Na praia, irmanados pelo mesmo mar, todas as manhãs o francês Pierre le Grand, herói de guerra, e o alemão Hans Kröger que comandou o submarino que entrando pelo Tamisa, bombardeou Londres, cumprimentavam-se cortesmente.
Seu sobrinho Arthur Werner Kröger, o Ary, veio para instalação do Hotel Cibratel e ficou.
Quando estava para morrer, disse ao genro que gostaria que sua ida para o hospital, em Santos, fosse pela praia. Queria se despedir do mar.
Alto e forte, barba branca manchada de cigarro, Ary tornou-se lenda.
Seu maior amigo, o ator Elias Gleiser, ao saber de sua morte foi até o cemitério de Itanhaém e, sobre seu túmulo, colocou uma garrafa de cerveja com dois copos, um que bebeu e outro que partiu sobre a sepultura.
No terraço debruçado sobre a noite, Emy e eu celebramos lembranças com a brisa que vem do oceano.
Ao longe alguém canta ao violão:
“− Itanhaém, o que é que você tem, quem vem uma vez vem sempre, fica triste se não vem.”