Evocar Guilherme de Almeida no 40º aniversário de sua morte é algo que me deixa fascinado.

O amigo está de tal modo presente nos diálogos de meu caminho, tão moço entre os que participaram da revolução estética de 22 e da guerra santa de 32 que falar dele em termos do novo século, torna-se exercício de esperança.

Pergunto-me qual a mais antiga lembrança que possuo a seu respeito?

Mergulho no tempo e volto à casa de meus avós na Rua Rego Freitas, 59, esquina da Epitácio Pessoa, onde morava Antônio Cândido Camargo, cirurgião notável e personagem do romance “Madame Pommery”.

Nos dias que antecederam o 9 de Julho, os irmãos Guilherme e Tácito, Aureliano Leite, Carlos Moraes de Andrade, irmão de Mário e Ibrahim Nobre faziam do solar de meus avós centro de pregação revolucionária.

Depois, recordo todos cantando a Marcha do Soldado Paulista, com letra de Guilherme de Almeida e música de Marcelo Tupinambá.

Passados mais de dez anos, vou com Guilherme e Baby ao Atelier Bar, na Avenida Ipiranga, para cantar com eles em primeira audição, a Canção do Expedicionário, acompanhados ao piano por Paulinho Gontijo de Carvalho, o lendário “Polera” das madrugadas.

Em 1945 levo ao Poeta de São Paulo, os originais do “Antonio Triste” que sairia em 47 com seu prefácio consagrador e ilustrações de Tarsila.

Guilherme foi o companheiro paciente e sábio de minha adolescência extravagante.

Em sua casa, primeiro na Pamplona e depois na Macapá, convivi com Roberto Simonsen, Di Cavalcanti, René Thiollier, Batista Pereira e Tarsila do Amaral.

Noitadas inesquecíveis onde ouvíamos o anfitrião dicorrer sobre os mais diversos assuntos que iam da Grécia clássica à cibernética, da poesia provençal à botânica e à história, do ocultismo à heráldica e ao cinema.

Guilherme foi mestre de poesia. Ele e Manuel Bandeira conheciam o ofício como ninguém.

Num dia em que disse a ele que ritmo é a respiração do pensamento, ouvi a mais profunda lição sobre o sentido mântrico da rima, desencadeadora de processos mágicos que faziam o homem e seus chacras entrarem em comunhão com o corpo vivo do universo.

Na poética do autor de “Nós” há lugar para uma cosmogonia vária, leque de rumos que surpreende e fascina.

Em suas mãos de demiurgo o verso é criatura fecundante, processo transmutável e encantatório, ouro espiritual que vai agir na sensibilidade do leitor.

Foi um homem raro, nascido da cultura e da velha cepa de guerreiros e navegadores que gravaram no livro de linhagens o brasão dos Almeidas e Andrades maternos, descendentes dos velhos Camargos bandeirantes.

Sua poética surge das ondas de um mar português e é embalado pelo Acalanto de Bartira.

Entre cantares de amigo e sonetos dos mais belos do idioma, entre Canções Gregas e evocações da Raça, o peregrino do encanto atravessa a vida em sua via de romeiro de Compostela.

Lírico e épico, participante e metafísico, o cavaleiro andante luta por sua terra e por sua dama.

O mês das neblinas é a síntese numinosa da existência do cantor de nossas glórias. Nele nasceu e nele viveu apaixonadamente o 9 de Julho.

Na saga de sua existência, o voluntário de 32 coloca o fuzil e a pena a serviço de uma causa.

Em sua panóplia, a língua portuguesa brilha um brilho antigo e renovado.

Quando em 1962 levei Jorge Mautner à sua casa, o encontro produziu tamanha impressão no jovem escritor que exclamou, ao despedir-se:

- Mas esse homem é um bruxo!

Sim, Guilherme era um Iniciado e a Poesia sua Ciência Sagrada!