Quanta coisa pode acontecer em torno de um picadeiro! Isso ocorreu há mais de setenta anos. Era bem pequeno, mas guardei fatos e detalhes com nitidez.

Circo mambembe se instalara no Largo do Arouche, junto aos bebedouros verdes que davam de beber à sede de cavalos e de burros.

Sob a lona remendada, entre palhaços envelhecidos e amazonas que engordavam, a molecada aguardava inquieta o início da apresentação.

Acompanhado de meu pai eu ia registrando, no deslumbramento de meus seis anos, os lances do espetáculo.

Súbito, uma voz familiar soa na arquibancada:

- Porcaria de circo, não tem nem pessoar!

Era tia Alice, irmã de minha bisavó Leôncia, protestando.

O lutador de luta romana abre o desfile dos astros. Apenas a pele de leão velho cobre os músculos que clamam pela ação. Em pé, no meio do picadeiro, lança desafio à platéia: – Quem teria coragem de enfrentá-lo?

O silêncio desce do trapézio balouçante e envolve o respeitável público.

No meio do povo ouve-se uma voz:

- Eu aceito o desafio.

O arrepio percorre nossos nervos infantis.

Um vizinho da Rua Rego Freitas, o cirurgião Antônio Cândido Camargo, salta para arena despindo o paletó e arrancando a camisa.

Os dois gigantes se entreolham e principia o combate.

Alguns minutos mais tarde, o Camargão deitava por terra o desafiante. Com a careca e a bigodeira molhados de suor, o marido de D. Clementina se retira sob os aplausos do bairro.

Depois dos palhaços e dos equilibristas, entra em cena o atirador de facas que, gentilmente, pergunta ao público se alguém teria coragem de se submeter a uma prova de pontaria.

Um moço se levanta dirigindo-se para a arena.

Magro, alto, elegante, com o rosto coberto de sardas, nosso primo José Pinto Alves, o “Tico-Tico”, encosta o corpo na tábua e de braços abertos exclama:

- Pode começar.

As facas vão sendo atiradas formando na madeira a silhueta daquele que se tornou o herói de minha meninice.

Quando a última faca foi fincada, ouve-se um grito na platéia:

- É meu sobrinho, é meu sobrinho que está sendo assassinado!

Tia Alice, em sua miopia, reconhecera o “Tico-Tico” e ameaçava desmaiar.

A banda desafinadamente irrompe num dobrado.

O circo mambembe cobre-se de glória.