Terra e Mar

Eis o poeta Paulo Bomfim galopando ou navegando pelos sonetos em estado de puro deslumbramento, eu disse galopando? Ou navegando?
Difícil, sim, localizar o poeta, ou melhor, classificá-lo ajuizadamente, digamos, porque ele nos escapa sempre, indomável. E solitário em sua trajetória que de repente é interrompida “quando alguém atira a rede”.

E nós, demônios, peixes e suicidas,
Penetramos por meio de palavras
Aquele que recolhe nossas vidas.

Influência portuguesa nas suas mais profundas raízes? Sim, talvez, e se deixo aí esse prudente talvez é porque também nos escapa uma lúcida tentativa de filiação. Sabemos, isto sim, que o poeta ama a liberdade e nesse anseio de desatar os nós ele se inspira desafiante ou quase arrogante na tentativa de desvendar os mistérios da criação poética.

Volto a insistir nesse anseio de liberdade que transparece nos sonetos de Paulo Bomfim. Contudo, a métrica desses sonetos é perfeita e perfeita a sonoridade das rimas neste livro que fala da vida e da morte. Que fala com insistência da aventura do amor. As interrogações do poeta em torno dos dias mortos são aflitivas e agora não resisto ao impulso de lembrar aqui essa inspirada aflição:

Os dias mortos, sim, onde enterrá-los?
Que solo se abrirá para acolhê-los
Com seus pés indecisos, seus cabelos,
Seu galope de sôfregos cavalos!

O poeta se desespera em face do tempo e pergunta em meio da perplexidade o que fazer diante da desintegração desse tempo. “Fártuo fogo de febre e de fuligem” que também é um canteiro em pleno mar, onde enterrar esses dias?

Em nossa carne, sim, em nossos portos
Quando o fim regressar à própria origem,
Repousarão também os dias mortos!

O crítico Nogueira Moutinho, comentando o alto nível intelectual de Paulo Bomfim, chega a compará-lo assim a um verdadeiro alquimista em meio da “fusão dos metais nessas temperaturas elevadíssimas que surge ao longo dos poemas, a cintilação do aurum purum”.

A esse ouro também se refere o escritor Gilberto de Mello Kujawski no prefácio admirável que escreveu sobre o poeta. Tece comentários em torno da sucessiva periodicidade de prestígio e desprestígio do soneto na história das escolas literárias brasileiras. Sim, o soneto andou e desandou na Escola Romântica, aquela apaixonante Escola de Morrer Cedo, como a chamou o poeta Carlos Drummond de Andrade. E a Escola Parnasiana, a bem penteada escola tentando botar ordem na casa, ou melhor, ordenar o inferno romântico. Ainda o ideal de beleza, sem dúvida, mas com maior apuro no ritmo e na forma. A reação irônica, mais do que irônica, a reação sarcástica dos modernistas radicais desvalorizando o soneto “Como se este não passasse de um simples jogo de armar, brinquedo próprio de estetas e narcisistas refinados, sem o menor sentido de responsabilidade pelo destino do homem e da história” − acentuou Mello Kujawski.

Passei pelas escolas literárias feito um gato por brasas para concluir, afinal, que não vejo Paulo Bomfim enquadrado em nenhuma desses escolas: no tropel que lembra o sonho dos bandeirantes ou quando entra pelo mar adentro, ele vai sozinho. Ou melhor, acompanhado, às vezes, por um Raul de Leoni, por um Guilherme de Almeida e por um Jorge de Lima. A essa trilogia eu quero acrescentar Vinicius de Moraes, aquele dos sonetos.

Paulo Bomfim faz muitas perguntas na tentativa de decifrar a si mesmo e ao próximo. Consegue explicar esse embrulho que é o ser humano?

Neste livro o leitor é cúmplice há-de encontrar a luminosa resposta.

Lygia Fagundes Telles
São Paulo, Março de 2005.