O Alquimista do Soneto

Na história da literatura o prestígio do soneto sofre oscilações periódicas que mereceriam um estudo à parte.

A composição de quatorze versos não brilhou nem no Romantismo, nem no Modernismo. Dentre os românticos brasileiros, o único sonetista foi o mais medíocre de todos eles, o hoje ilegível poeta Domingos José Gonçalves de Magalhães, autor de venerandos sonetaços rimando “natureza” com “grandeza” e “redondeza”, “peito” com “leito” e “nume” com “ciúme”. Dentre os modernos nenhum cabeça de fila destacou-se a propósito. Mário de Andrade e Oswald ignoraram o soneto, que foi um dos alvos prediletos da fúria iconoclasta desencadeada pela Semana de 22. Desde o Modernismo ficou conhecida a definição pejorativa do soneto como “gaiola de catorze versos”. Bandeira e Drummond tentaram reabilitar o soneto, mas não passam ambos de sonetistas medianos, embora grandes poetas.

Foi no Parnasianismo, como se sabe − com Bilac e Raimundo Corrêa − e no simbolismo − com Cruz e Souza e Alphonsus de Guimarães − que o soneto atingiria sua máxima perfeição formal. A apropriação do gênero pelos parnasianos foi tão absorvente que chegou a parecer, erroneamente, que todo soneto só poderia ser perfeito se medrasse no solo e nos ares do Parnaso.

De que forma explicar esta periodicidade sucessiva de prestígio e desprestígio do soneto ao longo da história e da literatura? Embora o problema seja de índole complexa e reservada aos especialistas, arrisco aqui a minha hipótese. O que se nota é que nas épocas históricas em que a poesia pretende ser mais do que poesia, desdobrando-se em “práxis”, ação transformadora do mundo e do homem, então os poetas declaram guerra aberta ao soneto, ridicularizando-o como modelo de composição estreita, burguesa, excessivamente formal e bem comportada. Assim, durante os primeiros tempos do Romantismo e do Modernismo, ambos identificados no impulso de revolucionar a sociedade, de inverter a tábua de valores vigentes, enunciando a renovação da política, do direito da moral, e, como não poderia deixar de ser, da estética.

Não admira que românticos e modernos radicais desvalorizem o soneto, como se este não passasse de um simples jogo de armar, brinquedo próprio de estetas e narcisistas refinados, sem o menor sentido de responsabilidade pelo destino do homem e da história.

Passada a febre do radicalismo romântico e modernista, reconquistada a poesia como fim em si mesma, eis que o soneto recupera seus plenos direitos. No soneto, a poesia não quer ser senão poesia; e quem diz poesia, diz jogo, “ludus”; e jogo implica em regras, dentro das quais o poeta tem que se manter rigorosamente (sob pena de negação do jogo). A poesia que não se pretende senão poesia, recobra as formas fixas, os modelos tradicionais, os preceitos canônicos. E, dentre os modelos clássicos de poema, o soneto será provavelmente o mais rigoroso e formalizado, o molde mais castiço e concentrado, com a vantagem de emoldurar a idéia como que num quadro, de modo a ser apreendida num só golpe de vista, no estilo menos discursivo possível. Não creio estar de todo mal dizer que o soneto é a forma na qual a poesia reflete a sua própria imagem, como a lua na superfície de um lago. Poesia concentrada à segunda potência. Poesia da poesia.
Em nossa literatura o soneto voltaria aos seus dias de glória, inicialmente, com três poetas: Raul de Leoni, Guilherme de Almeida e Jorge de Lima. Juntou-se, agora, a estes três nomes consagrados, o nome não menos significativo de Paulo bomfim, alquimista do soneto.
Onde Paulo Bomfim provou pela primeira vez, e para sempre, sua força de sonetista absoluto foi na série de sonetos que compõem o Armorial, esta transposição do largo mar dos navegadores para a cerrada selva dos bandeirantes, e esta transfusão da seiva ancestral do sangue nutriente da memória:

A selva é mar de todos os naufrágios.
Inutilmente somos a presença
Daqueles que partiram sem voltar.

Não haja dúvida, em Armorial o poder de concentração e de contenção do soneto atinge as vibrações telúricas mais profundas, que partem da raiz da condição bandeirante, do primeiro encontro auroral do homem paulista com a terra, na qual haveria de lutar até ser tragado por suas entranhas, o desconhecido da selva prolongando-se no desconhecido da morte, do nunca mais, do retorno:

As serras são Penélopes fiando
Distância. Sobre seios de cristal,
Os homens dormirão o último sono.

No Armorial não há um verso, uma palavra sequer, que não resulte do sopro da inspiração criadora, que é o nome corrente da intuição poética, esta captação direta da imagem entretecida à rima e ao ritmo, o ritmo que é “a respiração do pensamento”, como magnificamente o define Paulo Bomfim, recordando sempre que Guilherme de Almeida chamava atenção para o “sentido mântrico da rima”.

O soneto de Paulo Bomfim não fere a inteligência com a plasticidade luminosa de Raul de Leoni; nem comporta a atmosfera impressionista de Guilherme de Almeida; nem estremece a imaginação com o visionarismo de Jorge de Lima; tão pouco exibe a vaidade artesanal dos parnasianos, ou vagueza mórbida dos simbolistas, e muito menos a sovinice sentimental dos modernos que aderiram tardiamente ao molde petraqueano. Seus catorze versos são sempre repassados por uma energia de sentimentos e uma dinâmica emocional poderosa, irradiante, generosa, que impõe sua força até mesmo nos momentos de depressão existencial. Exprimem uma psicologia sempre em movimento, até a incandescência, como uma roda em fogo, de tanto girar. E neste movimento interior unifica no mesmo campo de energia a paisagem e a alma, o passado e o presente, a palavra e o sangue, o sonho e a lucidez, o cotidiano e o maravilhoso. Assim é que o equilíbrio do seu soneto não é estático, mas dinâmico, feito de tensões contrapostas, da luta entre os contrários, de sístole e diástole como o próprio coração. O soneto de Paulo bomfim representa o ponto de conjunção, o conúbio alquímico, a fórmula de redenção na qual suas forças em luta encontram breve momento de harmonia e repouso.

O soneto bomfiniano não é forma de aprisionamento.

Desde o poema de Transfiguração, que abre este livro (Venho de longe, trago o pensamento / Banhado em velhos sais e maresias), no hausto largo que domina estes versos, sente-se o salto para a liberdade, a descompressão, a busca do horizonte. Não é nenhuma gaiola. O soneto de Paulo Bomfim é nuvem, pássaro, flor, ciranda, carrossel, relógio de sol, ampulheta, paisagem marinha, sino, mandala, barco, destino:

E na procura desse desatino,
Vou gritando ao sabor das correntezas:
− Meu barco, meu soneto, meu destino!

Gilberto de Mello Kujawski

SP, 14 de agosto de 1983

Formado em direito e filosofia - PUC/SP.
Membro do Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF).
Autor de livros e colaborador regular dos jornais "O Estado de S.Paulo" e "Jornal da Tarde".