jose de souza martins 11a48O Jornal Estado de São Paulo, em seu caderno Cidades/Metrópole, hoje, 31 de Janeiro de 2011, publicou um artigo sobre Paulo Bomfim, escrito por José de Souza Martins

JANEIROS DO POETA DE PIRATININGA

Guardo a poesia de Paulo Bomfim no arcaz da sacristia da memória como paramento simbólico da liturgia de renovação cíclica da identidade paulista. Nos 25 de janeiro, gosto de ler Armorial debruçado na janela de meu quarto, sussurrando seus versos ao meu silêncio, pavimentando de poesia o áspero Caminho do Mar, a triste Estrada das Lágrimas, a descida da Rua Tabatinguera, sempre em busca do Tamanduateí ancestral, no rumo do Anhembi decisivo.

Rua que não muda de nome há 400 anos, pronunciado ainda na língua nheengatu daquela primeira missa no Pátio do Colégio, à beira da escarpa recoberta de visões e lembranças. No terreiro ainda se ouve as invocações da litania, de sotainas batidas pelo vento, de Anchieta, Nóbrega, Manuel de Paiva que balbuciam, no latim nativo e sertanejo de Tibiriçá, as palavras sagradas daquela primeira hora de todos nós. Átrio a que fomos trazidos pela vida um dia, na demora dos séculos, coração do Planalto de Piratininga.

A alma dos índios de muitas nações, de ibéricos de feição muçulmana, de mamelucos de pele azeitonada e zigomas salientes, vagam pelos sertões da poesia de Paulo Bomfim nessa busca incessante, nessa conquista de si mesmos, nesse entrecruzar de gentes que nos fez o que somos, nessa espera longa de seus versos, dedicados a seus “antepassados que ainda não regressaram do sertão...” Vagam pelos rios, trilhas e veredas das terras do sem fim. Procuram, procuram-se. Busca que não é estranha aos versos épicos de Camões, escritos na contra-folha do testamento de um bandeirante morto de uma flecha nos confins do Brasil. Dores e culpas, preços da invenção da pátria: “Meus remorsos são flores esculpidas/ no muro das guaíras que queimei...”

A poesia de Paulo Bomfim entretece os fios do lirismo de nossas travessias. Desde a lonjura dos começos, marco das origens num soneto de Transfiguração:“Venho de longe, trago o pensamento/ banhado em velhos sais e maresias;/ arrasto velas rotas pelo vento. E mastros carregados de agonias./ Venho de longe a contornar a esmo,/ o cabo das tormentas de mim mesmo.” Até a eternidade dos retornos, desse chegar sem partir do Pátio do Colégio do nosso encontro: “O pião do dia roda entre destinos,/ estranhamente vão se abrindo as portas/ e somos novamente esses meninos!”

Pensamos a memória histórica da cidade e da pátria paulista quase sempre na limitação física da arquitetura, na petrificação dos monumentos esculpidos em pedra ou bronze, como tantos, maltratados aliás, de nossas praças. Ou no engano de nomes de rua errados, como o que nos diz que os sofridos índios Caiuá são os Kaiówaas. Mas a nossa memória está muito mais no sensível do que no tangível, nos versos do poeta que nos lembra: “Ao longe, uma chuva fina/ molha aquilo que não fomos.”